CAP. 3 - LUTAS E HUMILHAÇÕES
[...]
Muito
ao longe, Tarso repousava entre arvoredos. As auras vespertinas
vibravam no ambiente, sem perturbar a placidez das coisas. Mergulhado
na quietude da Natureza, Saulo recuou mentalmente ao dia da sua
radical transformação. Lembrou o abandono na pensão de Judas, a
indiferença de Sadoc à sua amizade. Rememorou a primeira reunião
de Damasco, na qual suportara tantos apupos, ironias e sarcasmos.
Demandara Palmira, ansioso pela assistência de Gamaliel, a fim de
penetrar a causa do Cristo, mas o nobre mestre lhe aconselhara o
insulamento no deserto. Recordou as duras dificuldades do tear e a
carência de recursos de toda a espécie, no oásis solitário.
Naqueles dias silenciosos e longos, jamais pudera esquecer a noiva
morta, lutando por erguer-se, espiritualmente, acima dos sonhos
desmoronados. Por mais que estudasse o Evangelho, intimamente
experimentava singular remorso pelo sacrifício de Estevão,
que, a seu ver, fora a pedra tumular do seu noivado futuroso. Suas
noites estavam cheias de infinitas angústias. Às vezes, em
pesadelos dolorosos, sentia-se de novo em Jerusalém, assinando
sentenças iníquas. As vítimas da grande perseguição acusavam-no,
olhando-o assustadas, como se a sua fisionomia fosse a de um monstro.
A esperança no Cristo reanimava-lhe o espírito resoluto. Depois de
provas ásperas, deixara a solidão para regressar à vida social.
Novamente em Damasco, a sinagoga o recebeu com ameaças. Os amigos de
outros tempos, com profunda ironia, lançavam-lhe epítetos cruéis.
Foi-lhe necessário fugir como criminoso comum, saltando muros pela
calada da noite. Depois, buscara Jerusalém, na esperança de
fazer-se compreendido. Contudo, Alexandre, em cujo espírito culto
pretendia encontrar melhor entendimento, recebera-o como visionário
e mentiroso. Extremamente fatigado, batera à porta da igreja do
“Caminho”, mas fora obrigado a recolher-se a uma reles
hospedaria, por força das suspeitas justas dos Apóstolos da
Galiléia. Doente e abatido, fora levado à presença de Simão
Pedro, que lhe ministrara lições de alta prudência e excessiva
bondade, mas, a exemplo de Gamaliel, aconselhara-lhe prévio
recolhimento, discrição, aprendizado em suma. Embalde procurava um
meio de harmonizar as circunstâncias, de maneira a cooperar na obra
do Evangelho e todas as portas pareciam fechadas ao seu esforço.
Afinal, dirigira-se a Tarso, ansioso do amparo familiar para
reiniciar a vida. A atitude paterna só lhe agravara as desilusões.
Repelindo-o,
o genitor lançava-o num abismo. Agora começava a compreender que,
reencetar a existência, não era volver à atividade do ninho
antigo, mas principiar, do fundo dalma, o esforço interior, alijar o
passado nos mínimos resquícios, ser outro homem enfim.
Compreendia
a nova situação, mas não pôde impedir as lágrimas que lhe
afloravam copiosas.
Quando
deu acordo de si, a noite havia fechado de todo. O céu oriental
resplandecia de estrelas. Ventos suaves sopravam de longe,
refrescando-lhe a fronte incandescida. Acomodou-se como pôde, entre
as pedras agrestes, sem coragem de eximir-se ao silêncio da Natureza
amiga. Não obstante prosseguir no curso de suas amargas reflexões,
sentia-se mais calmo. Confiou ao Mestre as preocupações acerbas,
pediu o remédio da sua misericórdia e procurou manter-se em
repouso. Após a prece ardente, cessou de chorar, figurando-se-lhe
que uma força superior e invisível lhe balsamizava as chagas da
alma opressa.
Breve,
em doce quietude do cérebro dolorido, sentiu que o sono começava a
empolgá-lo.
Suavíssima
sensação de repouso proporcionava-lhe grande alívio. Estaria
dormindo?
Tinha
a impressão de haver penetrado uma região de sonhos deliciosos.
Sentia-se ágil e feliz. Tinha a impressão de que fora arrebatado a
uma campina tocada de luz primaveril, isenta e longe deste mundo.
Flores brilhantes, como feitas de névoa colorida, desabrochavam ao
longo de estradas maravilhosas, rasgadas na região banhada de
claridades indefiníveis.
Tudo
lhe falava de um mundo diferente. Aos seus ouvidos toavam harmonias
suaves, dando ideia de cavatinas executadas ao longe, em harpas e
alaúdes divinos. Desejava identificar a paisagem, definir-lhe os
contornos, enriquecer observações, mas um sentimento profundo de
paz deslumbrava-o inteiramente. Devia ter penetrado um reino
maravilhoso, porquanto os portentos espirituais que se patenteavam a
seus olhos excediam todo entendimento.
Mal
não havia despertado desse deslumbramento, quando se sentiu presa de
novas surpresas com a aproximação de alguém que pisava de leve,
acercando-se de mansinho. Mais alguns instantes, viu Estevão
e Abigail à sua frente, jovens e formosos, envergando vestes
tão brilhantes e tão alvas que mais se assemelhavam a peplos de
neve translúcida.
Incapaz
de traduzir as sagradas comoções de sua alma, Saulo de Tarso
ajoelhou-se e começou a chorar.
Os
dois irmãos, que voltavam a encorajá-lo, aproximaram-Se com
generoso sorriso.
— Levanta-te,
Saulo! — disse Estevão com profunda bondade.
— Que
é isso? Choras? — perguntou Abigail em tom blandicioso. —
Estarias desalentado quando a tarefa apenas começa?
O moço
tarsense, agora de pé, desatou em pranto convulsivo. Aquelas
lágrimas não eram somente um desabafo do coração abandonado no
mundo. Traduziam um júbilo infinito, uma gratidão imensa a Jesus,
sempre pródigo de proteção e benefícios. Quis aproximar-se,
oscular as mãos de Estevão, rogar perdão para o nefando
passado, mas foi o mártir do “Caminho” que, na luz de sua
ressurreição gloriosa, aproximou-se do ex-rabino e o abraçou
efusivamente, como se o fizesse a um irmão amado. Depois,
beijando-lhe a fronte, murmurou com ternura:
— Saulo,
não te detenhas no passado! Quem haverá, no mundo, isento de erros?
Só Jesus foi puro!...
O ex-discípulo
de Gamaliel sentia-se mergulhado em verdadeiro oceano de venturas.
Queria
falar das suas alegrias infindas, agradecer tamanhas dádivas, mas
indômita emoção lhe selava os lábios e confundia o coração.
Amparado por Estevão, que lhe sorria em silêncio, viu
Abigail mais formosa que nunca, recordando-lhe as flores da
primavera na casa humilde do caminho de Jope. Não pôde furtar-se às
reflexões do homem, esquecer os sonhos desfeitos, lembrando-os,
acima de tudo, naquele glorioso minuto da sua vida. Pensou no lar que
poderia ter constituído; no carinho com que a jovem de Corinto lhe
cuidaria dos filhos afetuosos; no amor insubstituível que sua
dedicação lhe poderia dar. Mas, compreendendo-lhe os mais íntimos
pensamentos, a noiva espiritual aproximou-se, tomou-lhe a destra
calejada nos labores rudes do deserto e falou comovidamente:
— Nunca
nos faltará um lar... Tê-lo-emos no coração de quantos vierem à
nossa estrada.
Quanto
aos filhos, temos a família imensa que Jesus nos legou em sua
misericórdia... Os filhos do Calvário são nossos também... Eles
estão em toda parte, esperando a herança do Salvador.
O moço
tarsense entendeu a carinhosa advertência, arquivando-a no imo do
coração.
— Não
te entregues ao desalento — continuou Abigail, generosa e
solícita —; nossos antepassados conheceram o Deus dos Exércitos,
que era o dono dos triunfos sangrentos, do ouro e da prata do mundo;
nós, porém, conhecemos o Pai, que é o Senhor de nosso coração.
A
Lei nos destacava a fé, pela riqueza das dádivas materiais nos
sacrifícios; mas o Evangelho nos conhece pela confiança inesgotável
e pela fé ativa ao serviço do Todo-Poderoso. É preciso ser fiel a
Deus, Saulo! Ainda que o mundo inteiro se voltasse contra ti,
possuirias o tesouro inesgotável do coração fiel. A paz triunfante
do Cristo é a da alma laboriosa, que obedece e confia... Não tornes
a recalcitrar contra os aguilhões. Esvazia-te dos pensamentos do
mundo. Quando hajas esgotado a derradeira gota da posca dos enganos
terrenos, Jesus encherá teu espírito de claridades imortais!...
Experimentando
infindo consolo, Saulo chegava a perturbar-se pela incapacidade de
articular uma frase. As exortações de Abigail calar-lhe-iam
para sempre. Nunca mais permitiria que o desânimo se apossasse dele.
Enorme esperança represava-se, agora, em seu íntimo. Trabalharia
para o Cristo em todos os lugares e circunstâncias. O Mestre
sacrificara-se por todos os homens. Dedicar-lhe a existência
representava um nobre dever. Enquanto formulava estes pensamentos,
recordou a dificuldade de harmonizar-se com as criaturas.
Encontraria
lutas. Lembrou a promessa de Jesus, de que estaria presente onde
houvesse irmãos reunidos em seu nome. Mas tudo lhe pareceu
subitamente difícil naquela rápida operação intelectual. As
sinagogas combatiam-se entre si. A própria igreja de Jerusalém
tendia, novamente, às influências judaizantes. Foi aí que Abigail
respondeu, de novo, aos seus apelos íntimos, exclamando com infinito
carinho:
— Reclamas
companheiros concordes contigo nas edificações evangélicas. Mas é
preciso lembrar que Jesus não os teve. Os apóstolos não puderam
concordar com o Mestre senão com o auxílio do Céu, depois da
Ressurreição e do Pentecostes. Os mais amados dormiam, enquanto
Ele, agoniado, orava no horto. Uns negaram-no, outros fugiram na hora
decisiva.
Concorda
com Jesus e trabalha. O caminho para Deus está subdividido em
verdadeira infinidade de planos. O espírito passará sozinho de uma
esfera para outra. Toda elevação é difícil, mas somente aí
encontramos a vitória real. Recorda a “porta estreita” das
lições evangélicas e caminha. Quando seja oportuno, Jesus chamará
ao teu labor os que possam concordar contigo, em seu nome. Dedica-te
ao Mestre em todos os instantes de tua vida. Serve-o com energia e
ternura, como quem sabe que a realização espiritual reclama o
concurso de todos os sentimentos que enobreçam a alma.
Saulo
estava enlevado. Não poderia traduzir as sensações cariciosas que
lhe represavam no coração tomado de inefável contentamento.
Esperanças novas bafejavam-lhe a alma. Em sua retina espiritual
desdobrava-se radioso futuro. Quis mover-se, agradecer a dádiva
sublime, mas a emoção privava-o de qualquer manifestação afetiva.
Entretanto, pairava-lhe no espírito uma grande interrogação. Que
fazer, doravante, para triunfar? Como completar as noções sagradas
que lhe competia exemplificar praticamente, sem anotação de
sacrifícios?
Deixando
perceber que lhe ouvia as mais secretas interpelações, Abigail
adiantou-se, sempre carinhosa:
— Saulo,
para certeza da vitória no escabroso caminho, lembra-te de que é
preciso dar: Jesus deu ao mundo quanto possuía e, acima de tudo,
deu-nos a compreensão intuitiva das nossas fraquezas, para
tolerarmos as misérias humanas...
O moço
tarsense notou que Estevão, nesse ínterim, se despedia,
endereçando-lhe um olhar fraterno.
Abigail,
por sua vez, apertava-lhe as mãos com imensa ternura. O ex-rabino
desejaria prolongar a deliciosa visão para o resto da vida,
manter-se junto dela para sempre; contudo, a entidade querida
esboçava um gesto de amoroso adeus. Esforçou-se, então, por
catalogar apressadamente suas necessidades espirituais, desejoso de
ouvi-la relativamente aos problemas que o defrontavam. Ansioso de
aproveitar as mínimas parcelas daquele glorioso, fugaz minuto, Saulo
alinhava mentalmente grande número de perguntas. Que fazer para
adquirir a compreensão perfeita dos desígnios do Cristo?
— Ama!
— respondeu Abigail espontaneamente.
Mas,
como proceder de modo a enriquecermos na virtude divina? Jesus
aconselha o amor aos próprios inimigos. Entretanto, considerava quão
difícil devia ser semelhante realização. Penoso testemunhar
dedicação, sem o real entendimento dos outros. Como fazer para que
a alma alcançasse tão elevada expressão de esforço com
Jesus-Cristo?
— Trabalha!
— esclareceu a noiva amada, sorrindo bondosamente.
Abigail
tinha razão. Era necessário realizar a obra de aperfeiçoamento
interior. Desejava ardentemente fazê-lo. Para isso insulara-se no
deserto, por mais de mil dias consecutivos.
Todavia,
voltando ao ambiente do esforço coletivo, em cooperação com
antigos companheiros, acalentava sadias esperanças que se
converteram em dolorosas perplexidades.
Que
providências adotar contra o desânimo destruidor?
— Espera!
— disse ela ainda, num gesto de terna solicitude, como quem
desejava esclarecer que a alma deve estar pronta a atender ao
programa divino, em qualquer circunstância, extreme de caprichos
pessoais.
Ouvindo-a,
Saulo considerou que a esperança fora sempre a companheira dos seus
dias mais ásperos. Saberia aguardar o porvir com as bênçãos do
Altíssimo. Confiaria na sua misericórdia. Não desdenharia as
oportunidades do serviço redentor. Mas... os homens? Em toda parte
medrava a confusão nos espíritos. Reconhecia que, de fato, a
concordância geral em torno dos ensinamentos do Mestre Divino
representava uma das realizações mais difíceis, no desdobramento
do Evangelho; mas, além disso, as criaturas pareciam igualmente
desinteressadas da verdade e da luz. Os israelitas agarravam-se à
Lei de Moisés, intensificando o regime das hipocrisias farisaicas;
os seguidores do “Caminho” aproximavam-se novamente das
sinagogas, fugiam dos gentios, submetiam-se, rigorosamente, aos
processos da circuncisão. Onde a liberdade do Cristo? Onde as vastas
esperanças que o seu amor trouxera à Humanidade inteira, sem
exclusão dos filhos de outras raças? Concordavam em que se fazia
indispensável amar, trabalhar, esperar; entretanto, como agir no
âmbito de forças tão heterogêneas? Como conciliar as grandiosas
lições do Evangelho com a indiferença dos homens?
Abigail
apertou-lhe as mãos com mais ternura, a indicar as despedidas, e
acentuou docemente:
— Perdoa!...
Em
seguida, seu vulto luminoso pareceu diluir-se como se fosse feito de
fragmentos de aurora.
Empolgado
pela maravilhosa revelação, Saulo viu-se só, sem saber como
coordenar as expressões do próprio deslumbramento. Na região, que
se coroava de claridades infinitas, sentiam-se vibrações de
misteriosa beleza. Aos seus ouvidos continuavam chegando ecos
longínquos de sublimes harmonias siderais, que pareciam traduzir
mensagens de amor, oriundas de sóis distantes... Ajoelhou-se e orou!
Agradeceu ao Senhor a maravilha das suas bênçãos. Daí a
instantes, como se energias imponderáveis o reconduzissem ao
ambiente da Terra, sentiu-se no leito rústico, improvisado entre as
pedras. Incapaz de esclarecer o prodigioso fenômeno, Saulo de Tarso
contemplou os céus, embevecido.
O
infinito azul do firmamento não era um abismo em cujo fundo
brilhavam estrelas... A seus olhos, o espaço adquiria nova
significação; devia estar cheio de expressões de vida, que ao
homem comum não era dado compreender. Haveria corpos celestes, como
os havia terrestres. A criatura não estava abandonada, em
particular, pelos poderes supremos da Criação. A bondade de Deus
excedia a toda a inteligência humana. Os que se haviam libertado da
carne voltavam do plano espiritual por confortar os que permaneciam a
distância.
Para
Estevão, ele fora verdugo cruel; para Abigail, noivo
ingrato. Entretanto, permitia o Senhor que ambos regressassem à
paisagem caliginosa do mundo, reanimando-lhe o coração.
A
existência planetária alcançava novo sentido nas suas elucubrações
profundas.
Ninguém
estaria abandonado, Os homens mais miseráveis teriam no céu quem os
acompanhasse com desvelada dedicação. Por mais duras que fossem as
experiências humanas, a vida, agora, assumia nova feição de
harmonia e beleza eternas.
A
Natureza estava calma. O luar esplendia no alto em vibrações de
encanto indefinível.
De
quando em quando, o vento sussurrava de leve, espalhando mensagens
misteriosas.
[...]
Fonte:
Paulo e Estêvão (Ditado por Emmanuel. Psicografia de Chico
Xavier. Editora FEB. 1941)
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