CAP.
13 – COMPANHEIRO LIBERTADO [desencarnação de Dimas]
Depois
de vários preparativos, principalmente ao lado de Cavalcante, que
piorara após a intervenção cirúrgica, Jerônimo articulou
providências referentes à desencarnação de Dimas, cuja posição
era das mais precárias.
De
manhãzinha, após entender-se com a Irmã Zenóbia, quanto à
localização do primeiro amigo a libertar-se dos laços físicos, o
Assistente convidou-nos ao trabalho.
Compreendia,
mais uma vez, que há tempo de morrer, como há tempo de nascer.
Dimas alcançara o período de renovação e, por isso, seria
subtraído à forma grosseira, de modo a transformar-se para o novo
aprendizado. Não fora determinado dia exato. Atingira-se o tempo
próprio. Recordando, contudo, meu caso particular e sequioso de
elucidações construtivas, ousei interrogar nosso orientador,
enquanto regressávamos ao círculo carnal, pela manhã.
— Prezado
Assistente — indaguei —, releve-me o desejo de saber
particularidades do serviço... Poderá, todavia, informar-me se
Dimas desencarnará em ocasião adequada? Viveu ele toda a cota de
tempo suscetível de ser aproveitada por seu Espírito na Crosta da
Terra? completou a relação de serviços que o trouxera ao
renascimento?
— Não
— respondeu o interpelado, com firmeza —, não chegou a
aproveitar todo o tempo prefixado.
— Oh!
— considerei, levianamente — terá sido, como fui, suicida
inconsciente? Penetrei nossa colônia nessa condição e, antes de
obter a graça do refúgio renovador, experimentei acerbos
padecimentos.
Enunciando
tal apreciação, ponderava sobre a tarefa especial de socorrê-lo.
Razões fortes, decerto, motivariam o esforço que se levava a
efeito, mas a informação do orientador desconcertava-me. Se o irmão
referido não completara o tempo previsto ao roteiro de obrigações
que lhe fora traçado, porque tamanha consideração? Mereceria o
movimento excepcional de assistência individualizada? que motivo
impeliria a esfera superior a prestar-lhe tanta atenção?
Jerônimo
compreendeu, sem dúvida, a venenosa preocupação que me dominava o
pensamento, mas absteve-se de longas explicações, confirmando,
simplesmente:
— Não,
André, nosso amigo não é suicida.
Mais
acertado seria silenciar raciocínios suspeitos; entretanto, meu
inveterado instinto de pesquisa intelectual era demasiado forte para
que eu me dominasse.
Fixando-o,
algo confundido, tornei a perguntar:
— Mas
se Dimas não aproveitou todo o tempo de que dispunha, não terá
também desperdiçado a oportunidade, como aconteceu a mim mesmo?
Meu
interlocutor estampou no semblante leve sorriso e acentuou,
compassivo:
— Não
conheço seu passado, André, e acredito que as melhores intenções
terão movido suas atividades no pretérito. A situação do amigo a
que nos referimos, porém, é muito clara. Dimas não conseguiu
preencher toda a cota de tempo que lhe era lícito utilizar, em
virtude do ambiente de sacrifício que lhe dominou os dias, na
existência a termo. Acostumado, desde a infância, à luta sem
mimos, desenvolveu o corpo, entre deveres e abnegações incessantes.
Desfavorecido de qualquer vantagem material no princípio, conheceu
ásperas obrigações para ganhar a intimidade com as leituras mais
simples. Entregue ao serviço rude, no verdor da mocidade, constituiu
a família, pingando suor no sacrifício diário. Passou a vida em
submissão a regulamentos, conquistando a subsistência com enorme
despesa de energia. Mesmo assim, encontrou recursos para dedicar-se
aos que gemem e sofrem nos planos mais baixos que o dele. Recebendo a
mediunidade, colocou-a a serviço do bem coletivo. Conviveu com os
desalentados e aflitos de toda sorte. E porque seu espírito sensível
encontrava prazer em ser útil e em razão dos necessitados guardarem
raramente a noção do equilibrio, sua existência converteu-se em
refúgio de enfermos do corpo e da alma. Perdeu, quase integralmente,
o conforto da vida social, privou-se de estudos edificantes que lhe
poderiam prodigalizar mais amplas realizações ao idealismo de homem
de bem e prejudicou as células físicas, no acúmulo de serviço
obrigatório e acelerado na causa do sofrimento humano. Pelas
vigílias compulsórias, noite a dentro, atenuou-se-lhe a resistência
nervosa; pela inevitável irregularidade das refeições,
distanciou-se da saúde harmoniosa do estômago; pelas perseguições
gratuitas de que foi objeto, gastou fosfato excessivamente e, pelos
choques reiterados com a dor alheia, que sempre lhe repercutiu
amargamente no coração, alojou destruidoras vibrações no fígado,
criando afecções morais que o incapacitaram para as funções
regeneradoras do sangue. É verdade que não podemos louvar o
trabalhador que perde qualquer órgão fundamental da vida fisica em
atrito com as perturbações que companheiros encarnados criam e
incentivam para si mesmos; no entanto, faz-se preciso considerar as
circunstâncias em jogo. Dimas poderia receber, com naturalidade,
semelhantes emissões destrutivas, mantendo-se na serenidade
intangível do legítimo apóstolo do Evangelho. Todavia, não se
organiza de um dia
para outro o anteparo psíquico contra o bombardeio dos
raios perturbadores da mente alheia, como
não é fácil improvisar cais seguro ante o oceano em ressaca.
Cercado de exigéncias sentimentais, subalimnentado, maldormido, teve
as reiteradas congestões hepáticas convertidas na cirrose
hipertráfica, portadora da desintegração do corpo.
Interrompeu-se
o orientador, e, como me sentisse fundamente envergonhado pelo
paralelo que inadvertidamente estabelecera, Jerônimo acentuou:
— Segundo
observamos, há existências que perdem pela extensão, ganhando,
porém, pela intensidade. A visão imperfeita dos homens encarnados
reclama o exame acurado dos efeitos, mas a visão divina jamais
despreza minuciosas investigações sobre as causas...
Calei-me,
humilhado. O hábito de analisar pessoas e ocorrências,
unilateralmente, mais uma vez me impunha proveitosa decepção.
Naturalmente, o Assistente conhecia-me a antiga posição, estaria
informado de meus desvios anteriores, mas dignava-se evitar-me
desapontamento mais fundo com referências comparativas. Assomaram-me
recordações do passado, mais nítidas e esclarecedoras.
Inegavelmente, conduzira minha última experiência como melhor me
pareceu. Tomava refeições calmas e substanciosas, a horas certas;
dera-me a estudos prediletos; dispunha de meu tempo com rigorosa
independência nas decisões; cerrava a porta aos clientes
antipáticos, quando me faltava disposição para suportá-los; nunca
molestara o fígado por sofrimentos alheios, porque era ele pequeno
para conter as vibrações destruidoras de minhas próprias
Irritações, ao sentir-me contrariado nos pontos de vista pessoais,
e, sobretudo, aniquilara o aparelho gastrintestinal pelo excesso de
comestíveis e bebedices aliados à sífilis a que eu mesmo dera
guarida, levianamente. Havia, portanto, muita diversidade entre o
caso Dimas e o meu. O dedicado servidor do bem empregara as
possibilidades que o Céu lhe confiara em benefício de outrem.
Quanto a mim, centralizado em mim mesmo, gozara essas possibilidades
até ao clímax, perdendo-me pela abusiva saciedade.
Jerônimo
era, porém, suficientemente bom para não comentar realidades tão
duras. Reafirmando a generosidade espontânea que o caracterizava,
desarticulou minhas impressões desagradáveis, tangendo assuntos
novos.
Em
breve, chegávamos à residência do enfermo, cujo estado era
gravíssimo.
Alguns
amigos desencarnados velavam, atentos.
Iluminada
entidade que evidenciava grande interesse pelo agonizante, acercou-se
do Assistente, indagando se o decesso fora marcado para aquele dia.
— Sim
— esclareceu o interpelado —, a resistência orgânica terminou.
Estamos autorizados a aliviá-lo, o que faremos hoje, alijando-lhe o
fardo pesado de matéria densa.
A
interlocutora consultou-o, ainda, sobre a oportunidade de reunir ali
alguns beneficiados da missão cumprida pelo moribundo, que lhe
desejavam testemunhar carinhoso apreço, no derradeiro dia carnal.
— Minha
amiga compreende as dificuldades inerentes ao assunto — respondeu o
nosso dirigente com gentileza. — Se Dimas estivesse plenamente
senhor das emoções, não surgiria inconveniente algum. Entretanto,
ele permanece agora sob agitações psíquicas muito fortes. Conhece
o fim próximo do aparelho carnal, mas não pode esquivar-se, de
súbito, às algemas domésticas. Teme o futuro dos seus, conserva-se
em total descontrole dos nervos e enlaça-se nas emissões de
inquietude da esposa e dos filhos. Cremos ser inoportuna essa visita
compacta, no decorrer das atividades da desencarnação, mesmo em se
tratando dos melhores amigos do doente, para que se lhe não agrave o
descontrole mental. Dimas poderá, não obstante, ser amparado pelo
afeto dos que por ele têm afeição, logo se desfaça do corpo
grosseiro. Além disso, sugiro que manifestação de carinho,
merecida e justa, lhe seja prestada por quantos o estimam, no dia em
que nos deslocarmos da Casa Transitória de Fabiano para as regiões
mais altas. Nosso irmão e cooperador descansará, ali, sob atencioso
cuidado, junto de outros amigos em condições análogas. Não
faltaremos com o aviso prévio sobre sua partida, para que se
congreguem conosco os seus afeiçoados, na prece de reconhecimento
que elevaremos ao Todo-Poderoso.
A
consulente manifestou sincera satisfação e acentuou:
— Bem
lembrado! Esperaremos a comunicação no instante oportuno.
Logo
após, despediu-se, afastando-se ao lado de outros visitantes de
nossa esfera, que nos deixavam, agora, campo livre para a nossa
necessária atuação.
O
transe era, sem dúvida, melindroso.
A
esposa do médium, ao pé dele, não obstante prolongadas vigílias e
sacrifícios estafantes, que a expressão fisionômica denunciava,
mantinha-se firme a seu lado, olhos vermelhos de chorar, emitindo
forças de retenção amorosa que prendiam o moribundo em vasto
emaranhado de fios cinzentos, dando-nos a impressão de peixe
encarcerado em rede caprichosa.
Jerônimo
apontou-a, bondoso, e explicou:
— Nossa
pobre amiga é o primeiro empecilho a remover. Improvisemos
temporária melhora para o agonizante, a fim de sossegar-lhe a mente
aflita. Somente depois de semelhante medida conseguiremos retirá-lo,
sem maior impedimento. As correntes de força, exteriorizadas por
ela, infundem vida aparente aos centros de energia vital, já em
adiantado processo de desintegração.
Recomendou
o Assistente que Luciana e Hipólito se mantivessem ao lado da
senhora, modificando-lhe as vibrações mentais, e Instruindo-me para
coadjuvar-lhe a influenciação, como se fazia mister.
Enquanto
mantinha as mãos coladas ao cérebro de Dimas, propiciando-lhe a
renovação das forças gerais, Jerônimo aplicava-lhe passes
longitudinais, desfazendo os fios magnéticos que se entrecruzavam
sobre o corpo abatido.
Reparei
que o moribundo se encontrava já em dolorosas condições.
Plenamente desorganizado, o fígado começava definitivamente a
paralisar suas funções. O estômago, o pâncreas e o duodeno
apresentavam anomalias estranhas. Os rins pareciam pràticamente
mortos. Os glomérulos prendiam-se aos ramos arteriais como
pequeninos botões arroxeados; os tubos coletores, enrijecidos,
prenunciavam o fim do corpo. Sintomas de gangrena pesavam em toda a
atmosfera orgânica.
O que
mais impressionava, porém, era a movimentação da fauna
microscópica. Corpúsculos das mais variadas espécies nadavam nos
líquidos acumulados no ventre, concentrando-se particularmente no
ângulo hepático, como a buscarem alguma coisa, com avidez, nas
vizinhanças da vesícula.
O coração
trabalhava com dificuldade. Enfim, o enfraquecimento atingira o auge.
— Precisamos
fornecer-lhe melhoras fictícias — asseverou o dirigente de nossas
atividades
tranquilizando-lhe
os parentes aflitos. A câmara está repleta de substâncias mentais
torturantes.
O Assistente
principiou, então, a exercer intensivamente sua influência.
Dimas,
de raciocínio obnubilado pela dor, não divisava a nossa presença.
Os atritos celulares, pelo rápido desenvolvimento dos vírus
portadores do coma, impediam-lhe percepções claras. As proveitosas
faculdades mediúnicas que ele possuía haviam caído em temporário
eclipse, ante os choques do sofrimento. Era, porém, extremamente
sensível à atuação magnética.
Pouco
a pouco, com a interferência de Jerônimo, o amigo acalmou-se,
respirou em ritmo quase normal, abriu os olhos fundos e exclamou,
reconfortado:
— Graças
a Deus! Louvado seja Deus!
Um
dos filhos, a contemplá-lo, de olhos súplices, seguiu-lhe as
palavras, ansioso, indagando num gesto de alívio:
— Melhorou,
papai?
— Oh!
sim, meu filho, agora respiro mais livremente...
— Sente
os amigos espirituais ao seu lado? —tornou o rapaz, cheio de fé.
O enfermo
sorriu, algo triste, e retrucou:
— Não.
Quero crer que o sofrimento físico cerrou a porta que me comunicava
com a esfera invisível. Mesmo assim, estou muito confiante. Jesus
não nos desampara.
Fixou
a companheira em lágrimas e aduziu:
— Todos
nós experimentaremos a solidão nos grandes momentos de aferir
valores espirituais. Estou convencido de que os nossos Guias do Plano
Superior não me olvidarão as necessidades... entretanto... não
devo esperar que tomem cuidado permanente comigo...
Falava
em voz quase imperceptível, em virtude do abatimento, entrecortando
as palavras na respiração opressa.
A
senhora, vacilante, estava inteiramente amparada por Luciana, que a
abraçava, afetuosa. Viam-se-lhe os sinais de angustioso cansaço.
Lágrimas espessas corriam-lhe dos olhos congestionados.
Jerônimo,
agora, pousava a destra na fronte do moribundo, proporcionando-lhe
força, inspiração e idéias favoráveis ao desdobramento de nossos
serviços. Dimas mostrou novo brilho no olhar, encarou a companheira,
esforçando-se por parecer tranquilo, e rogou:
— Querida,
vá descansar!... Peço-lhe... Tantas noites a fio, de sentinela,
acabarão por aniquilá-la. Que será de mim, doente e exausto, se o
desânimo surpreender-nos a todos?
Fez
mais longo intervalo e prosseguiu:
— Repouse
a meu pedido. Ficaria tão satisfeito se a visse mais forte... Não
se retarde. Sinto-me muito melhor e sei que o dia será de calma e
reconforto.
Cedendo
às instâncias do esposo e docemente constrangida pela influência
de Luciana e Hipólito, a matrona recolheu-se ao quarto.
Em
vista das melhoras obtidas, houve expansão de júbilo familiar. O
médico foi chamado. Radiante, o clínico asseverou que os
prognósticos contrariavam suposições anteriores. Renovou as
indicações, dispensou os anestésicos e recomendou ao pessoal
doméstico que entregasse o doente ao repouso absoluto. Dimas acusava
melhoras surpreendentes. Era razoável, portanto, que a câmara fôsse
deixada em silêncio para que ele tivesse um sono reparador.
O
esculápio atendia-nos ao desejo.
Em
breves minutos, o compartimento ficou solitário, facilitando-nos o
serviço.
O
Assistente distribuiu trabalho a todos nós.
Hipólito
e Luciana, depois de tecerem uma rede fluídica de defesa, em torno
do leito, para que as vibrações mentais inferiores fôssem
absorvidas, permaneceram em prece ao lado, enquanto eu mantinha a
destra sobre o plexo solar do agonizante.
— Iniciaremos,
agora, as operações decisivas — declarou-nos Jerônimo, resoluto
—, antes, porém, forneçamos ao nosso amigo a oportunidade da
oração final.
O Assistente
tocou-o, demoradamente, na parte posterior do cérebro. Vimos que o
agonizante passou a emitir pensamentos luminosos e belos. Não nos
via, nem nos ouvia, de maneira direta, mas conservava a intuição
clara e ativa. Sob o controle de Jerônimo, experimentou imperiosa
necessidade de orar e, embora os lábios cansados prosseguissem
imóveis, assinalamos a rogativa mental que endereçava ao Divino
Mestre:
— Meu
Senhor Jesus-Cristo, creio que atingi o fim de meu corpo, do corpo
que me deste, por algum tempo, como dádiva preciosa e bendita. Eu
não sei, Senhor, quantas vezes feri a máquina fisiológica que me
confiaste. Inconscicntemente, quebrei-lhe as peças com o meu
descaso, menosprezando patrimônios sagrados, cujo valor estou
reconhecendo em mais de doze meses de sofrimento carnal incessante.
Não te posso implorar a bênção da morte pacífica, porque nada
fiz de bom ou de útil por merecê-la. Mas se é possível, Amado
Médico, socorre-me com o teu compassivo e desvelado amor! Curaste
paralíticos, cegos e leprosos... Porque te não compadecerás de
mim, miserável peregrino da Terra?...
Seus
olhos deixaram escapar lágrimas abundantes.
Após
breves minutos, observamos que o agonisante recordava a meninice
distante. Na tela miraculosa da memória, revia o colo materno e
sentia sede do carinho de mãe. Oh! se pudesse contar com o socorro
da abençoada velhinha que a morte arrebatara há tantos anos! —
refletia. Premido pelas doces reminiscências, modificou o quadro da
súplica, lembrou a cena da crucificação de Jesus, insistiu
mentalmente por vislumbrar o vulto sublime de Maria e, sentindo-se de
joelhos, diante dela. implorou:
— Mãe
dos céus, mãe das mães humanas, refúgio dos órfãos da Terra,
sou agora, também, o menino frágil com fome do afeto maternal nesta
hora suprema! Oh! Senhora Divina, mãe de meu Mestre e de meu Senhor,
digna-te abençoar-me! Lembra que teu filho divino pôde ver-te no
derradeiro instante e intercede por mim, mísero servo, para que eu
tenha minha santa mãe ao meu lado no minuto de partir!...
Socorre-me! não me abandones, anjo tutelar da Humanidade, bendita
entre as mulheres!
Oh!
providência maravilhosa do Céu! Convertera-se o coração do
moribundo em foco radioso e a porta de acesso deu entrada a venerável
anciã, coroada de luz semelhando neve luminosa. Ela se aproximou de
Jerônimo e informou, após desejar-nos a paz divina:
— Sou
a mãe dele...
O
Assistente comentou a urgência da tarefa que nos aguardava e
confiou-lhe o depósito querido.
Em
breves instantes, tínhamos perante os olhos inolvidável quadro
afetivo. Sentara-se a velhinha no leito, depondo a cabeça do
moribundo no regaço acolhedor, afagando-a com as mãos caridosas.
Em
virtude do reforço valioso no setor da colaboração, Hipólito e
Luciana, atendendo ao nosso dirigente, foram velar pelo sono da
esposa, para que as suas emissões mentais não nos alterassem o
esforço.
No
recinto, permanecemos os três apenas.
Dimas,
experimentando indefinível bem-estar no regaço materno, parecia
esquecer, agora, todas as mágoas, sentindo-se amparado como criança
semi-inconsciente, quase feliz. Ordenou Jerônimo que me conservasse
vigilante, de mãos coladas àfronte do enfermo, passando, logo após,
ao serviço complexo e silencioso de magnetização. Em primeiro
lugar, Insensibilizou inteiramente o vago, para facilitar o
desligamento nas vísceras. A seguir, utilizando passes
longitudinais, isolou todo o sistema nervoso simpático,
neutralizando, mais tarde, as fibras inibidoras no cérebro.
Descansando alguns segundos, asseverou:
— Não
convém que Dimas fale, agora, aos parentes. Formularia, talvez,
solicitações descabidas.
Indicou
o desencarnante e comentou, sorrindo:
— Noutro
tempo, André, os antigos acreditavam que entidades mitológicas
cortavam os fios da vida humana. Nós somos Parcas autênticas,
efetuando semelhante operação...
E
porque eu indagasse, tímido, por onde iríamos começar, explicou-me
o orientador:
— Segundo
você sabe, há três regiões orgânicas fundamentais que demandam
extremo cuidado nos serviços de liberação da alma: o centro
vegetativo, ligado ao ventre, como sede das manifestações
fisiológicas; o centro emocional, zona dos sentimentos e desejos,
sediado no tórax, e o centro mental, mais importante por excelência,
situado no cérebro.
Minha
curiosidade intelectual era enorme. Entendendo, porém, que a hora
não comportava longos esclarecimentos, abstive-me de indagações.
Jerônimo,
todavia, gentil como sempre, percebeu-me o propósito de pesquisa e
acrescentou:
— Noutro
ensejo, André, você estudará o problema transcendente das várias
zonas vitais da individualidade.
Aconselhando-me
cautela na ministração de energias magnéticas à mente do
moribundo, começou a operar sobre o plexo solar, desatando laços
que localizavam forças físicas. Com espanto, notei que certa porção
de substância leitosa extravasava do umbigo, pairando em torno.
Esticaram-se os membros inferiores, com sintomas de esfriamento.
Dimas
gemeu, em voz alta, semi-inconsciente.
Acorreram
amigos, assustados. Sacos de água quente foram-lhe apostos nos pés.
Mas, antes que os familiares entrassem em cena, Jerônimo, com passes
concentrados sobre o tórax, relaxou os elos que mantinham a coesão
celular no centro emotivo, operando sobre determinado ponto do
coração, que passou a funcionar como bomba mecânica,
desreguladamente. Nova cota de substância desprendia-se do corpo, do
epigastro à garganta, mas reparei que todos os músculos trabalhavam
fortemente contra a partida da alma, opondo-se à libertação das
forças motrizes, em esforço desesperado, ocasionando angustiosa
aflição ao paciente. O campo físico oferecia-nos resistência,
insistindo pela retenção do senhor espiritual.
Com
a fuga do pulso, foram chamados os parentes e o médico, que
acorreram, pressurosos. No regaço maternal, todavia, e sob nossa
influenciação direta, Dimas não conseguiu articular palavras ou
concatenar raciocínios.
Alcançáramos
o coma, em boas condições.
O
Assistente estabeleceu reduzido tempo de descanso, mas volveu a
intervir no cérebro. Era a última etapa. Concentrando todo o seu
potencial de energia na fossa romboidal, Jerônimo quebrou alguma
coisa que não pude perceber com minúcias, e brilhante chama
violeta-dourada desligou-se da região craniana, absorvendo,
instantâneamente, a vasta porção de substância leitosa já
exteriorizada. Quis fitar a brilhante luz, mas confesso que era
difícil fixá-la, com rigor. Em breves instantes, porém, notei que
as forças em exame eram dotadas de movimento plasticizante. A chama
mencionada transformou-se em maravilhosa cabeça, em tudo idêntica à
do nosso amigo em desencarnação, constituindo-se, após ela, todo o
corpo perispiritual de Dimas, membro a membro, traço a traço. E,
àmedida que o novo organismo ressurgia ao nosso olhar, a luz
violeta-dourada, fulgurante no cérebro, empalidecia gradualmente,
até desaparecer, de todo, como se representasse o conjunto dos
princípios superiores da personalidade, momentaneamente recolhidos a
um único ponto, espraiando-se, em seguida, através de todos os
escaninhos do organismo perispirítico, assegurando, desse modo, a
coesão dos diferentes átomos, das novas dimensões vibratórias.
Dimas-desencarnado
elevou-se alguns palmos acima de Dimas-cadáver, apenas ligado ao
corpo através de leve cordão prateado, semelhante a autil elástico,
entre o cérebro de matéria densa, abandonado, e o cérebro de
matéria rarefeita do organismo liberto.
A
genitora abandonou o corpo grosseiro, rapidamente, e recolheu a nova
forma, envolvendo-a em túnica de tecido muito branco, que trazia
consigo.
Para
os nossos amigos encarnados, Dimas morrera, inteiramente. Para nós
outros, porém, a operação era ainda incompleta. O Assistente
deliberou que o cordão fluídico deveria permanecer até ao dia
imediato, considerando as necessidades do “morto”, ainda
imperfeitamente preparado para desenlace mais rápido.
E,
enquanto o médico fornecia explicações técnicas aos parentes em
pranto, Jerônimo convidou-nos à retirada, confiando, porém, o
recém-desencarnado àquela que lhe fora desvelada mãezinha no mundo
físico:
— Minha
irmã pode conservar o filho à vontade até amanhã, quando
cortaremos o fio derradeiro que o liga aos despojos, antes de
conduzi-lo a abrigo conveniente. Por enquanto, repousará ele na
contemplação do passado, que se lhe descortina em visão panorâmica
no campo interior. Além disso, acusa debilidade extrema após o
laborioso esforço do momento. Por essa razão, somente poderá
partir, em nossa companhia, findo o enterramento dos envoltórios
pesados, aos quais se une ainda pelos últimos resíduos.
A
anciã agradeceu com emoção e, dando a entender que lhe respondia
às argüições mentais, o Assistente concluiu:
— Convém
montar guarda aqui, vigilante, para que os amigos apaixonados e os
Inimigos gratuitos não lhe perturbem o repouso forçado de algumas
horas.
A
mãe de Dimas revelou-se muito grata e partimos, em grupo, a caminho
da fundação de Fabiano, de onde nossa expedição socorrista
regressaria à Crosta, no dia seguinte.
Fonte:
Obreiros da Vida Eterna (Ditado por André Luiz. Psicografado
por Chico Xavier. Editora FEB. 1946)
A
Morte de Dimas (Curta metragem espírita com base na obra
Obreiros da Vida Eterna):
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