A
ESTRADA DA VIDA
[...]
A
comparação seguinte pode ajudar a compreender as peripécias da
vida da alma.
Suponhamos
uma longa estrada, em cujo percurso se acham, de distância em
distância, mas a intervalos desiguais, florestas que devem ser
atravessadas; à entrada de cada floresta a estrada larga e bela é
interrompida e só retomada à saída. Um viajante segue essa rota e
entra na primeira floresta; mas aí não há trilha batida; é um
dédalo inextricável em cujo meio se perde; a luz do Sol desapareceu
sob a espessa copa das árvores; ele erra, sem saber para onde vai;
enfim, após fadigas incríveis, chega aos confins da floresta, mas,
extenuado, rasgado pelos espinhos, magoado pelas pedras. Ali
reencontra a estrada e a luz e prossegue seu caminho, procurando
curar suas feridas.
Mais
longe encontra uma segunda floresta, onde o esperam as mesmas
dificuldades; mas já tem alguma experiência; sabe evitá-las em
parte e delas sai com menos contusões. Numa encontra o lenhador que
lhe indica a direção a seguir e que o impede de se perder. Em cada
nova travessia sua habilidade aumenta, pois os obstáculos são
transpostos cada vez mais facilmente; certo de encontrar a bela
estrada à saída, essa confiança o anima; depois, sabe orientar-se
para a encontrar mais facilmente. A estrada conduz ao topo de uma
alta montanha, de onde descobre todo o percurso, desde o ponto de
partida; também vê as várias florestas que atravessou e se recorda
das vicissitudes que experimentou; mas a lembrança não é penosa
porque chegou ao fim; é como o velho soldado que, na calma do lar,
lembra-se das batalhas a que assistiu; essas florestas disseminadas
pela estrada são para ele como pontos negros numa fita branca. Diz
ele: “Quando eu estava nessas florestas, sobretudo nas primeiras,
como me pareciam longas para atravessar! Parecia-me que jamais
chegaria ao fim; tudo se afigurava gigantesco e intransponível em
volta de mim. E quando penso que, sem esse bravo lenhador que me pôs
no bom caminho, eu talvez ainda lá estivesse! Agora, que considero
essas mesmas florestas do ponto em que me encontro, como me parecem
pequenas! Parece que as teria transposto com um passo; ainda mais,
minha vista as penetra e distingo seus menores detalhes; vejo até os
passos errados que dei.”
Então
lhe diz um velho: - Meu filho, estás no fim da viagem; mas um
repouso indefinido logo te causaria um aborrecimento mortal e te
porias a lamentar as vicissitudes que experimentaste e que davam
atividade aos teus membros e ao teu espírito. Daqui vês um grande
número de viajantes na estrada que percorreste e que, como tu,
correm o risco de se perderem no caminho; tens a experiência e nada
mais temes; vai ao seu encontro e, por teus conselhos, trata de os
guiar, para que cheguem mais depressa.
-
Eu lá vou com alegria, responde o nosso homem. Mas, acrescenta ele,
por que não há uma estrada direta, desde o ponto de partida até
aqui? Isto evitaria que os viajantes passassem por estas florestas
abomináveis.
-
Meu filho, retoma o velho, olha bem e verás que há muitos que
evitam certo número delas; são os que, tendo adquirido mais cedo a
experiência necessária, sabem tomar um caminho mais direto e mais
curto para chegar; mas tal experiência é fruto do trabalho exigido
pelas primeiras travessias, de tal sorte que aqui somente chegam em
razão de seu mérito. O que saberias tu mesmo, se por elas não
tivesses passado? A atividade que tiveste de desenvolver, os recursos
da imaginação que te foram necessários para abrir caminho,
aumentaram teus conhecimentos e desenvolveram tua inteligência; sem
isto, serias tão inexperiente quanto em tua partida. E depois,
procurando sair do embaraço, tu mesmo contribuíste para melhorar as
florestas que atravessaste; o que fizeste é pouco, é imperceptível;
pensa, porém, nos milhares de viajantes que fazem outro tanto, e
que, trabalhando para si mesmos, sem o suspeitar trabalham para o bem
comum. Não é justo que recebam o salário de seu esforço, pelo
repouso que aqui desfrutam? Que direito teriam a este repouso, se
nada houvessem feito?
-
Meu pai, responde o viajante, numa dessas florestas encontrei um
homem que me disse: “Na ourela há um imenso abismo que deve ser
transposto de um salto; mas em mil, apenas um o consegue; todos os
outros caem no fundo de uma fornalha ardente e se perdem sem
remissão. Eu não vi esse abismo.”
-
Meu filho, é que ele não existe; do contrário, seria uma armadilha
abominável, preparada para todos os viajantes que vêm a minha casa.
Bem sei que lhes é necessário vencer dificuldades, mas também sei
que mais cedo ou mais tarde eles as vencerão. Se eu tivesse criado
impossibilidades para um só, sabendo que deveria sucumbir, teria
sido uma crueldade, com mais forte razão se o tivesse feito para um
grande número. Esse abismo é uma alegoria, cuja explicação vais
ver. Olha a estrada, no intervalo das florestas; entre os viajantes,
vês alguns que andam lentamente, com ar jovial; vês esses amigos
que se perderam de vista no labirinto da floresta, como são felizes
por se reencontrarem à saída; mas ao lado deles há outros que se
arrastam penosamente; estão estropiados e imploram a piedade dos
transeuntes, porque sofrem cruelmente das feridas que, por própria
culpa, fizeram nos espinheiros. Mas curar-se-ão e isso para eles
será uma lição que devem aproveitar na nova floresta a atravessar,
da qual sairão menos combalidos. O abismo é a imagem dos males que
sofrerão, e dizendo que em mil só um o transporá, aquele homem
teve razão, porque o número dos imprudentes é muito grande; mas
não estava certo ao dizer que, uma vez caído nele, não mais sairá.
Há sempre uma saída para chegar a mim. Vai, meu filho, vai mostrar
essa saída aos que estão no fundo do abismo; vai sustentar os
feridos da estrada e mostrar o caminho aos que atravessam as
florestas.
A
estrada é a imagem da vida espiritual da alma, em cujo percurso
somos mais ou menos felizes; as florestas são as existências
corporais, nas quais trabalhamos pelo próprio avanço, ao mesmo
tempo que na obra geral; o viajante, chegando ao fim e voltando para
ajudar os que estão atrasados, é a imagem dos anjos guardiães,
missionários de Deus, que encontram sua felicidade na visão da
Divindade, mas também na atividade que desenvolvem para fazer o bem
e obedecer ao Supremo Senhor.
Fonte:
Obras Póstumas (Allan Kardec)